Conto - Nua

ps: conto baseado na música "Nua" da Ana Carolina.

O rosto colado no vidro frio do metrô, eu vejo as pessoas entrando e saindo, todos os dias. Expressões vazias, ninguém conhece ninguém aqui dentro, mesmo que deem bom dia todas as manhãs. Sentada no canto, protegida pelo anonimato, pergunto-me se viverei assim pra sempre. Invisível. Apenas mais um rosto na multidão, mais uma garota na escola, mais uma namorada na lista interminável de festas. Eu nem peço muito, na verdade. Não gosto de me destacar, não gosto de chamar a atenção de todos para mim, mas se somente ela me notasse... Se ela apenas me visse...
Todos os dias eu pego o metrô rumo ao trabalho enquanto anoitece. Vejo as estrelas no céu, sinto a brisa noturna de fim de tarde. Não tenho do que reclamar, ninguém mexe comigo. Deixam-me sozinha. Aliás, como poderiam, se ninguém me vê? As únicas pessoas que me cumprimentam são as idosas, pois com o tempo, aprenderam a ver os outros ao seu redor. A viagem de metrô dura uma hora mais ou menos, e para em cinco estações durante o trajeto. Eu durmo por meia hora, e o resto do tempo os pensamentos me consomem. Observo tudo ao meu redor, sempre atenta. É interessante... Tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo, e ninguém nota. Está ali, bem a sua frente, mas você não vê. Você olha, mas não vê.

Em uma dessas estações, em um desses dias de verão em que o sol persistiu por mais algumas horas, ela entrou no metrô. Seus cabelos castanhos reluziram com a luz do sol, e eu não consegui afastar meus olhos negros. Não vou mentir, não era extraordinária, era uma menina comum. E foi isso o que me chamou a atenção. Sempre vejo pessoas completamente diferentes nas estações, entrando e saindo, passando pela vida. Mas ela era diferente, por ser comum. Achei interessante o modo como sentou distante, olhando pela janela, e ali ficou, com os fones nos ouvidos, completamente alheia a tudo e a todos. Tive vontade de ir falar com ela, mostrar como eu era tão comumente diferente de todo mundo como ela, que eu a entendia e a achava extraordinária. Mas o medo me fez ficar em meu devido lugar. Não queria incomodar. Talvez, quem sabe, um dia, ela iria me ver ali.
Mas isso não ocorreu. Depois de uns dois meses, descobri que ela nunca prestara atenção a mim. Quando ela entrava, eu já estava lá. Mas quando eu saia, ela ainda estava lá, tecnicamente já era para ter me visto. Uma vez, uma única vez, seus olhos se encontraram com os meus, e eu jurava que um mínimo sorriso havia aparecido em seus lábios, mas ele logo desapareceu. Eu contentava-me em observá-la de longe, criando cenários imaginários de encontros e acasos entre nós. Ouvi-a no celular certo dia, e descobri como sua voz era bonita. Dizia que tinha acabado de sair do trabalho. Era isso. Ela trabalhava de dia, e eu trabalhava de noite. E por um ínfimo espaço de tempo, nossas vidas se cruzavam dentro do vagão do metrô. Talvez eu tivesse mesmo sorte. Amigos me diziam que eu estava enlouquecendo, imaginando coisas, que eu deveria tomar uma atitude e ir falar com ela. Enchi-me de coragem, e aproximei-me.
— Olá. – foi o que eu consegui dizer sem gaguejar.
— Oi. – ela respondeu, balançando a cabeça.
Sentei-me ao seu lado, sem saber o que falar. Travei. Ela me olhou, curiosa, mas nada disse. Ficou ali, calada, durante todo o trajeto. De vez em quando seus olhos se perdiam nos meus, e nada mais. Ás vezes falava ao celular, e eu queria poder abrir a boca e lhe dizer o que estava entalado na garganta, mas eu não conseguia. Comecei a sentar ao seu lado todos os dias, na esperança de uma troca maior de palavras além de oi e olá. Mas com o tempo, acabei voltando ao meu banco de sempre, conformada com sua falta de assunto. Isso me frustrava. Eu tinha tanto para falar, tanto para contar... Mas aquele silêncio erguia uma barreira entre nós. Então, num entardecer, estando o vagão completamente lotado, ela entrou, ficando parada de pé bem à minha frente. Congelei, sem saber se olhava para ela ou disfarçava.
— Chuva forte, não é? – ela realmente estava falando comigo?
— Sim... Complicado pra ir trabalhar.
— Ainda vai pro trabalho? – perguntou curiosa. — Eu acabei de sair do meu.
— Sim, vou. Que bom, pelo menos dá pra descansar, principalmente com essa chuva boa.
— Com certeza, não vejo a hora de poder ficar na minha cama apenas relaxando. – ela abriu um sorriso lindo.
— Uhum.
Eu não consegui evitar a imagem daquela mulher deitada na cama, toda confortável e manhosa, apenas relaxando. Senti minhas bochechas queimarem, e ela deve ter percebido, mas nada disse. Levantei, pronta para descer, cedendo meu lugar a ela. Fui embora com o coração apertado, desejando ficar. Com o tempo, e as andanças, trocamos mais alguns diálogos aleatórios em dias de chuva ou de sol, mas nada muito mais aprofundado. Eu ansiava pelo nosso encontro àquela hora do dia, mas ela parecia falar comigo como se isso fosse apenas algo a mais dentro do seu dia tão atarefado. Como paciente nunca fui, comecei a irritar-me com isso, querendo cada vez mais que ela me visse além das minhas roupas, do meu falar engraçado, da minha mudez repentina ou dos meus olhos negros.
Esperei naquele dia, e ela não apareceu. A tristeza logo tomou conta de mim. Infelizmente, ela já havia tomado conta da minha cabeça, e do meu coração. Animava minhas noites, mesmo sem saber. E eu, não fazia a mínima ideia do que era dentro daquela incrível mulher. Sem saber como lidar com os sentimentos que cresciam e se acumulavam dentro de mim, acabei novamente optando pela loucura, minha velha amiga. No outro dia, não a vi, e quando achava que nada iria mudar meu mau humor, a vi saindo do metrô na estação seguinte. Não pensei duas vezes. Levantei-me, indo atrás dela. Não sabia-lhe o nome, mas mesmo assim eu gritei.
— Hey! Moça! – mas ela não olhava para trás. — Moça! – ela deu mais alguns passos, e quando eu achei que ela ia me ver, ela encostou-se a uma mureta, com o celular em mãos, atendendo uma ligação.
Ela não havia me ouvido... Ela não me via... Nunca veria... Não consegui me segurar. Eu tinha que fazer com que ela me visse, ou iria enlouquecer de vez. Bem, talvez, eu já tivesse enlouquecido. Parei em frente a ela, enquanto começava a me despir. Tirei o casaco, jogando-o no chão. Tirei os tênis, as meias, deixando-os ao meu lado. As pessoas começaram a me olhar, com caras de espanto, e eu engoli em seco, fingindo não as ver, focando apenas nela. Tirei a camiseta, jogando-a no chão, ficando de sutiã. Isso pareceu surtir efeito. Lentamente, ela se virou para mim, com uma careta, e ao me reconhecer, seus olhos se abriram em espanto e ela largou o celular, que caiu no chão.
— O que você ta fazendo? Ficou maluca?? – sua voz subiu uma oitava em desespero.
— Agora você me vê? Agora me enxerga? – perguntei com amargura na voz.
— Pelo amor de Deus, coloca isso de volta! – ela pegou a camiseta do chão, entregando-me.
— Não vou por porcaria nenhuma enquanto você não me ouvir! – senti as lágrimas se formando nos olhos, mas segurei firme.
— Pronto, estou ouvindo. – seus olhos se fixaram nos meus, atentos.
— Estou cansada de ser invisível. Estou cansada de ninguém me ver. Estou cansada de todos os dias você passar por mim no metrô e me dirigir um olá quando, por um milagre, me nota. Será que só assim pra você reparar em mim? Somente tendo que me despir no meio de uma estação de metrô lotada para poder me ver? Será que não percebe? Se não gostasse de mim, eu até entenderia, mas nossas conversas são incríveis, e quando você está num dia bom, elas duram por minutos a fio. Então você some. E quando volta, parece que não me vê. Passo as noites pensando em você, e os dias ansiando em te ver. E quando nos encontramos, você me ignora! Se não quisesse me ver, tinha mudado de lugar, de vagão, de cidade, do raio que o parta! Mas não, você fica ali, você gosta de me machucar é isso? Me diga, pelo amor de Deus, por que? – minha voz estava por um fio, e eu tremia, de frio e de nervoso, sentindo as lágrimas no rosto vermelho.
Sua respiração estava pesada, lenta, e ela me olhava com lágrimas nos olhos, sem saber o que dizer. Talvez nunca tivesse pensado naquilo, não soubesse que realmente fazia aquilo. Pensei que ela não fosse responder, e que tudo o que eu tinha dito fora em vão. Senti minhas pernas fraquejarem, o peso do momento e da vergonha caindo sobre meus ombros. Seus olhos se encontraram nos meus, e eu me surpreendi ao vê-la se mover, aproximando-se, segurando em minha nuca e em minha cintura, puxando-me para um beijo apaixonado. Meu corpo amoleceu, e eu me amparei em seus braços. Ao nos separarmos clamando por ar, ela acariciou meu queixo, sorrindo.
— Eu te vejo. Desde o primeiro dia em que entrei no metrô e deparei-me com você ali. Eu te enxergo. Eu sei quem você é. Eu só... Tive medo. Sou assim, quieta, no meu canto, sem amolar ninguém. Não sabia o que dizer, como me aproximar. E como você nada dizia, fiquei com medo de não querer minha companhia. Desculpa se te fiz sofrer, mas a verdade é que eu ansiava por esse beijo como anseio por ar. E agora que o experimentei, nunca mais quero beijar outra pessoa.
Nossos olhos se encontraram, e eu suspirei aliviada. Um policial uniformizado se aproximou, pedindo gentilmente que eu colocasse a roupa, ou ele iria me levar por atentado ao pudor. Rimos, enquanto eu me vestia, pedindo desculpas. As pessoas ao redor aplaudiram a cena, enquanto algumas se viraram com caras de poucos amigos. Após tudo devidamente no lugar, ela me confessou que sempre esperara uma atitude minha, e que tinha vibrado quando me viu sair do vagão atrás dela. Com cara de espanto, ri da minha própria idiotice, e me orgulhei da minha coragem. Talvez não fosse preciso ficar completamente nua para que ela me notasse, mas ter dado uma de louca no meio da estação para ganhar o coração da moça castanha tinha valido a pena.

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