Conto - Um Novo Tempo

   
         Fim de ano é sempre a mesma coisa. Lotado de promessas para um novo ano, que ninguém cumpre. Reuniões de famílias, amigos, companheiros de estrada, todos esperando que o novo ano trouxesse tudo de bom que os outros não tiveram a competência de trazer. Sentada na varanda da minha casa, no balanço, eu observo o céu que escurece. Último dia do ano. A felicidade correndo solta por todos os lugares que você vá... Pessoas nas ruas, nas lojas, nos restaurantes... Todos desejando um feliz ano novo. Será que desejam mesmo? Nunca pude entender essa felicidade que se propaga durante o fim do ano, entre natal e réveillon. Não, não ache que sou exceção. Faço parte dessa massa que ri e canta junto com as propagandas e as músicas. Que faz promessas, que estoura o champagne. E continuo não entendendo por que fazemos tudo isso. O que realmente muda. No que realmente ajuda.


             Tanta coisa mudou em tão pouco tempo... Ou seria tempo demais? No começo desse ano tudo era tão diferente... Tanta coisa aconteceu... Pessoas indo e vindo. Algumas que ficaram, e uma grande maioria que se foi. Olho ao meu redor e a casa está vazia; não completamente, lembra-me Lila, que late ao meu lado, abanando o rabo. Casa essa que era tão cheia de gente...  Gente essa que parecia durar para sempre. Fui criada no meio dessa gente que fala alto, que aprende a se virar, que tem vontade de continuar. Gente que briga, grita, mas está junto todo fim de ano. Que assa o pernil (preciso me lembrar de tirar do forno), que bebe vinho como quem bebe água (já tenho cinco litros para essa noite, acho que dá), que come lentilha (apesar de eu odiar essa sementinha sem gosto), que assiste ao show da virada (como eu adoro dançar!), que conversa e grita e espera a contagem regressiva (já tenho o espumante pronto em cima da mesa), gente como a gente.

            E hoje, essa gente não está mais aqui. Alguns o tempo levou, para um lugar melhor; outros resolveram viver outras aventuras. Alguns se cansaram, enquanto outros tomaram fôlego e se mudaram para longe. Hoje, não há mais muito barulho aqui dentro. Não há aqueles sermões que eu tanto odiava. Não há mais bateção de porta, encheção de saco... Como eu sinto falta de tudo isso. Mas não, não quero ser tão pessimista, não me entenda mal. É aquele gostoso saudosismo da nossa eterna infância que me bate no peito todos os finais de ano. A brisa balança meus cabelos e eu sinto a hora da mudança chegando. Acho que é isso. Isso é o ano novo. Esse é o motivo. Essa brisa. Essa ventania que arrasta os pesos que carregamos para longe, e traz o renovo, ar novo para dentro de nossos pulmões. É aquele momento que podemos emergir da água e respirar com alívio, para então voltar a mergulhar. Essa brisa é a felicidade e a esperança que de novos dias vão chegar. Mesmo que o primeiro dia seja exatamente igual ao último, o ar que percorre seus pulmões não é mais o mesmo. É um novo ânimo.

            A televisão me desperta de meus pensamentos. É aquela música global que toca todos os anos. Levanto-me correndo, eu adoro essa música! Não faço ideia do porquê, mas eu gosto. Corro para a sala para acompanhar a batida tão característica. “Hoje, é um novo dia, de um novo tempo, que começou.” Levanto a voz e começo a cantar junto com a música, enquanto Lila pula ao meu redor, querendo dançar junto comigo. “Todos nossos sonhos, serão verdade, o futuro, já começou...” Eu fecho os olhos, sentindo uma felicidade infinita tomando-me o corpo. Um sorriso desponta nos lábios. E por um segundo, um ínfimo segundo, eu não estou sozinha. Posso sentir a presença dos que já se foram a me rodear. Sinto como um abraço ao meu redor. “Hoje a festa é sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser, quem vier, a festa é sua, a festa é nossa, de quem quiser!” E tudo é festa. Eu posso sentir. Tudo novo de novo. E com um sorriso, a música se acabou, e o momento se eternizou na memória.

            Tomo banho com uma taça de vinho, a música rolando na televisão. Uma roupa nova e vermelha, para me trazer toda a paixão que eu ainda acredito que mereço. Um pouco de dança nua no quarto para dar sorte. Uma felicidade de quem aprendeu a ser feliz sozinha para não enlouquecer na solidão. Convido Lila para o nosso tão esperado jantar. Sento-me à mesa, com o pernil e a farofa e a maionese à frente, e então me sirvo. Relembro do Natal, e uma pontada de tristeza aparece em meus olhos. Mas não deixo ela me abater. Balanço a cabeça e sorrio. Acabo de comer e volto para a sala. As horas parecem nunca terminar. Quase onze horas da noite. Sento-me para ver o show da virada. Esqueço-me entre Bruno e Marrone, Claudia Leitte, Alcione e Zeca Pagodinho. Em dia de festa tudo é válido. O celular apita no bolso. Meu coração palpita no peito. Ao olhar para a tela minúscula, nada mais do que mensagem da operadora desejando feliz ano novo. Que novidade.

            Penso em ligar, quem sabe, como quem não quer nada, desejar um bom ano... Mas de que adianta? Nenhum deles me atende, ou me visita... Nenhum se lembra de mim... Os que se lembram, viajaram, e eu aqui continuei. Com um aceno de cabeça deixo a ideia inacabada e esquecida na mente. Suspiro. Onze e meia. Lila está impaciente ao meu lado. Eu sei, eu sei, calma, já vai acontecer. Onze e quarenta e cinco. Na televisão mostram as cidades, os fogos, os shows. Como eu gostaria de estar lá, no meio daquela multidão. Onze e cinquenta. Estão se preparando para a contagem regressiva, eu posso sentir a ansiedade daqui. Onze e cinquenta e cinco. Levanto-me e pego o champagne, a taça, e volto para o centro da sala. Olho para a televisão, sorrindo, com aquela esperança me invadindo o peito. Aquela felicidade que me acalenta. A certeza de que esse ano que chega vai ser melhor que o anterior. Vai ser melhor. Eu acredito. Preparado o espumante, espero pela contagem...

10. 9. 8. 7.

6. 5. 4.

3. 2.

1.

FELIZ ANO NOVO!

            As lágrimas escorrem pelo meu rosto vermelho. A rolha sai voando, zunindo pela sala, enquanto o líquido explode e escorre entre os dedos, pelo chão... Os fogos me deixam surda momentaneamente, e eu começo a pular com Lila colada ao meu calcanhar. Um grito mudo sai de meus lábios, enquanto sorrio com o vento adentrando à casa. Um novo tempo. Um novo ano. Começa agora. A campainha toca, e demora alguns segundos para eu sair daquele torpor em que me encontro. Estranhando, deixo a garrafa em cima da mesa e saio atrás da chave indo até o portão. É uma gritaria lá fora. Tanta gente! Quanta gente! Meus olhos não acreditam.

— O que fazem aqui? – quase grito estridente.

— Vai deixar a gente aqui fora? – o grito alegre de uma delas me pede para entrar.

— O carro quebrou no meio da estrada, voltamos. Passamos a virada dentro do carro, acredita? Aí passamos aqui! Tem comida ainda? – a outra fala sem parar, adentrando sem nem me cumprimentar.

            É um festival de abraços, gritos, sorrisos e bafo de bebida. Elas vão entrando, acomodando-se. No meio percebo gente que nem conheço! Namorado de uma, amigo da outra, primo de uma terceira. Olho para Lila, que se esconde debaixo do sofá. A garrafa está caída em cima da mesa, com o líquido escorrendo pelo chão. Mas já não mais me importa. Vou para junto do pessoal, oferecendo comida, bebida, e música da Ivete Sangalo que começa a pular na televisão. Enquanto todos conversam e enlouquecem, afasto-me um pouco, sentando no balanço. Observo todo mundo. Na minha casa. Essa gente toda. Que gente é essa? Minha gente. Sua gente. Nossa gente. Eles são todos. Eles somos nós. Eles são aqueles. Aquela gente. Gente que ainda vive guardada no coração. E então, olhando para o céu, as estrelas, eu entendi. O que muda somos nós, e no que ajuda? Saber que nunca estamos sozinhos, mesmo dentro da nossa loucura, da nossa solidão, não estamos sozinhos, pois aqueles que amamos, estarão sempre em nossa lembrança, em nosso coração. O sorriso aparece no rosto. Um novo ano. Um novo tempo. Uma nova vida. Uma nova esperança: o hoje.

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